sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Beira

Penso em escrever cartas para a morte. Penso que não devo morrer. Penso que vou morrer. Mas quero descartar a necessidade urgente desta prova difícil. Há infinitos meios de se aprender uma coisa, mas a cartilha mortuária é surpreendente. Mítica. Irei procrastinar a esfínge? Não queria ter de viver à beira, num exercício atencioso de equilíbrio. Mas assim, de qualquer forma, eu já vivo. E o pior : desatento. Por isso este genocídio já dura mais de vinte anos. Sigo empurrando um a um. Ora finjo brincar, como uma criança cruel joga um pedaço de graveto no abismo e espera ansiosamente o pulo ou a vida do cão. Ora minto. Digo “ você foi punido, vamos por aqui...” E quando perguntam sobre o capuz preto, desconverso. “Me acompanhe até o calabouço”. Mas a prisão é lugar de meias mortes, não atende expectativa. Pego lentamente pelo braço, com a pena da cegueira quando encontra rua, sorrio os lábios que parabenizam mães e rebentos. Atiro cão, capuz, cego e rebentos vazio à baixo. Reservo as mães. Ouço o grito de tudo com olhos de fogo de artifício. Passada a catarse, candidamente enfio palavras na mãe. Digo que volte para casa dada a pecha de absolvida. Sem contar ter mandado queimar sua casa e tudo que mora, para que essa morresse pelo assassinato da suas bússolas e ,tonta por ser apenas o que tinha, rodar, rodar, rodar. Cavar vales com os pés, fundo até onde a voz não trepe. As coisas se matam. Quem morrem são os mitos.

Mas viver à beira, Morte? À beira? E mar tem beira? Ele é grande demais pra ter beira. Quem acha nele beira é porque em dois se desdobrou e não sabe ser ilha. Talvez ninguém suporte ser envolvido todo tempo. No dia em que acreditei que praias eram poeiras de montanhas talvez quisesse ser beira. Hoje mais me quero farol. O aviso do anti-beira. O aviso das pedras insuportáveis para o casco. O aviso da beira que não pode ser, mas existe : a contragosto dos marinheiros sonolentos. Talvez , Morte, você esteja me empurrando para uma insônia infinita. Nunca havia pensado que morte e vigília combinassem. E não combinam. Você, Morte, também abre olhos.

Já há tanta coisa morta de falsa vida que se meu sangue estiver envenenado será o veneno o meu triunfo. Triunfo? Já me tomam os ares heróicos. Talvez queira que cada vez que apontem a minha doença seja um leit motif para eu-farol iluminar todas as outras. Mas sem mostrar caminhos. Farol não mostra caminho. Isso é coisa de estrela.
Farol é a prévia do insuportável. Instiga outro caminho. Torna urgente outro caminho. Ou debruça luz no que pode ser a morte.

Ao não te querer, sinto minha intuição traída. Ela sabe que vou. Só não queria que os outros acreditassem que a minha viagem será (em) breve. Tenho medo de, por maus ouvidos, eu acreditar. Medo, medo... Medo dos outros. Expurgado, já não tenho de mim. Não tenho fome de coisa morta. Só como o que frutifica do mim, também universo de brotos deificados. Já não tenho tanto apetite, sei da raridade dos frutos. E da abundância das coisas mortas. Mas o fruto também já não é parte morta, Morte? Ou é falso morto porque tem a esperança da semente? Escrevo banalidades... Mas estou à beira, e quando assim, o esquecido é desperdício. Sei que isso encheria até a boca os ouvidos de qualquer um e acho que você de certa forma me entende. Ou ao menos, muda que é, desta forma faz acreditar. Acham que você é contagiosa e pouco conversam. Afinal, um monólogo incessante para que você se afaste, como que assustada por mantras folclóricos, não pode ter sido nunca uma conversa. Até oram contra você! Cristo foi ao seu encontro e te enganou. Ele que podia ter morrido em paz (já que não tinha pecados), resolveu morrer brigado com você. Quis tirar teu gosto em escolher e fazer do teu ofício uma incessante repetição. Cristo quis te ver morrer em círculos. Disse que morria por ele e por todos os outros! Quis tirar seu prestígio de ser Morte e ainda cobra caro por isso sem nunca ter lhe dado um centavo. A cruz era seu direito autoral, Morte! De quantas maneiras você já não havia visto aquilo. Mas não era o filho preferido do Senhor e nunca ninguém havia cobrado tão caro por aquilo. E sem ninguém pedir o sacrifício! Uma charlatanice, só. Parece cartão de banco chegado sem pedido prévio. Garanto, Morte, a mim ninguém perguntou nada. Agora na beira, de nada adiantaria. Nunca adiantou. Só atrasou. E nem atrasou tanto assim, já que cá estou e também nunca pensei a nossa conversa como coisa que viria tão cedo. Talvez por isso seja muda! Foi traumatizada...Eu também estou traumatizado. E mudo. Mas pelo menos posso escrever o que há atrás do pensamento e reviver a cada palavra onde me reconheço. Ou te reconheço?

E você pra quem escreve? Qual é a sua letra? Sabe algo de fogo e fumaça que ainda preciso compreender. Me sinto preparado. Para ser seu amigo. Mas isso não quer dizer que você vai me levar pra onde você bem quiser. E sei que os caminhos são muitos além do céu e do inferno. Se choro, choro por preguiça. Mudar itinerários dá trabalho.

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