domingo, 27 de março de 2011

Carpideiras

debaixo da macieira
sentava aquele corpo
com as mãos fechadas
de comer maçãs e seus bichos
parecia ele entender
até pensar em si como Adão
e a cobra morder
parou.
furou seus próprios olhos
com o maior dente da cobra
para ver até onde ia sua fome
depois de todo se furar
na busca inútil das causas exteriores
que alargavam
sempre para o tamanho de seu apetite
maior
veio a idéia
no atravessar a luz pelo seu corpo furado
do sol que esquenta teias de jardins
que não:
não se come pelos olhos.

rodopiando na ira do desconhecer
afeto confuso das paixões
fita métrica no pescoço
quase enforcado
já de pé
o nó era o tamanho indeterminado
da sua adequada fome por bichos
que pensava torto
ser por maçãs:
pulava para a morte
como quem brincava
o último pulo
de uma amarelinha fatal

depois de morto
cansadas as pernas
com o tédio dos caminhos que se tornam habituais
pelo vagar de ser alma e no tudo entrar
tornou-se a sentar
perto do pé
da árvore
agora eram dois
assustados
depois do barulho guizo de um rastejo
bateu-lhe a cabeça
outra fome dizia
sim:
se come pela memória
só não
quando devir ser
o desejo de um homem
viciado em provar
e de súbito dilatou suas papilas
para provar o que havia de ser provado:
o incessante esquecer.

morreu pela segunda vez.
porque para esquecer da fome
achou que havia de esquecer
como se comia e engasgou
engolindo ar demais
e maçã de menos
tossiu a tosse
de uma esperança tuberculosa
entre os trancos do ar preso
desprendida era
sua segunda alma.

ninguém por aquelas maçãs entendia
porque agora haveria de ser
o enterro de madrugada
mas assim escolheu a alma
preta que não queria ser vista
fato respeitado por todos demais bichos e maçãs.

entre choros de apetites ansiosas
para nos seus portantos já idos também morrer
cuspia a cobra lembranças azedas
na cara de uma Eva
que nem o morto lembrava da existência:
eram a Eva e a serpente
as únicas carpideiras
no enterro de fomes
mal esquecidas de morrer
as duas assim
uma chorando sal
e a outra veneno
consolavam o tédio daquele luto
que no fundo intuido
todos sabiam não haver razão de ser
mas como era de costume
talvez a floresta seca
continuavam a alagar-se
como num mundo feito
sem bóias e barcas...


passada a vontade de se cansar a tarde num cemitério
e lembrar que o que cobria suas vergonhas
era o que de parreira não era uva
tirou da púbis uma folha
e nela apertou um cigarro
que nunca fumou :

eram da cobra as lágrimas
da chuva que o apagava
sem nunca se entediar
pensava
melhor fizesse se procurasse
outro vício para esquecer.

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