quinta-feira, 23 de abril de 2015

Trecho - " Os 13 bilhetes


Naquela dia ela dançou sozinha e chorou. Nem vassoura houve, artifício de anti-solidão. Ou a dança das cadeiras, pura queda. Chorou pingando pela sala água de olho e suor. Houvesse um espírito de qualquer-coisa -qualquer que falasse uma língua não-dita, talvez ouviria algum conselho. Era lua cheia, mas já não era tão verão. Não era outono também. Talvez tivesse que inventar uma estação. Ou um trem que partissse sem vaguear a partida ao meio, sem destrilhar seu coração numa poça.
De repente, se contorcendo de dor, como se pequenos nós atassem e desatassem incessantemente suas vísceras, abriu uma gaveta. Achou um punhado de papéis e uma oração amarela:
Que o universo lave
Do teu olho a inveja
Em sua secura chova luz
Dos braços tortos mova o abraço
Cumprimento corpo a corpo
Almas irmãs do clarão, elétrica e fogo
Que não assassinemos as crianças nossas
Órfãos que somos de nós mesmos
Velhos demais para morrermos livres
E novos demais para vivermos em grades
Transmutemos a repulsa em afeto
Os nomes em verbos
O adorno em nudez
O escândalo em silêncio
Transmutemos o desperdício em generosidade
O açoite em afago
As tesouras em laços
E o que deve morrer que morra

Nasça o anônimo iluminado
A criança vigorosa e desmedida
O tigre entre lanças
O peixe entre redes
O elefante de marfim
Os cavalos correm para lugar algum
Que nossos escudos de faísca e bronze
Amparem do infinito a dor
Rios de lágrimas desaguem
No nosso deus desconhecido
Terra adentro caminham também as águas
Como a lava andarilha o fogo
Brotem fontes aos nossos pés
Negros, molhados e humildes
Bradando em silêncio explosivo
O inominável Deus.
Leu. E parou de dançar. Talvez nunca tivesse ouvido o ruído do seu caduco coração. Se distraiu nesse palpitar estranho. Perturbada pelo seu próprio descompasso, parou de chorar. Deixou-se ouvir minutos a fio e sentindo uma liberdade atroz rachou por dentro. Abriram-se os diques, alagou as vastas terras que eram suas e por tal tamanho não as via. Espantou os ribeirinhos, afogou uns tantos. E os bichos correram por suas costas hipnotizados pelo abismo, só porque seco fosse, esquartejados pela gravidade e chão. Talvez naquele dia o deslumbre do que seria a liberdade fosse realmente quase um abismo. Das suas igrejas, sem remos, de longe, só se avistava a cruz. Nela molhada e abismada se agarrou. Silenciosamente chorou por dentro toda cinza, tempestade que era. Tudo aquilo era pior que dançar. Quis rasgar a oração, mas já não podia, lida, infinita que era, algemada na memória, por um instante, quis ser criança. Chorou alto de novo. Amarrou pedras aos pés e de cima da cruz quis se atirar. Mas havia chorado pouco, raso era, à morte não prestava. Resolveu ficar em silêncio, desceu da cruz, nadou até o abismo, rodopiou, dançou de novo por insistência do vento, caiu fundo e de tanto silêncio, já não tinha voz que clamasse o próprio corpo. Menos cinza ficava, mais amarela, todos os bichos desencavaram-se do abismo e rápido chegaram : já não havia corpo, nem costas. Ninguém tinha visto, nem o abismo, um sol com lábios tão bonitos.

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