segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Lumen


              Fazia tempo não acordava com tamanho vazio ao redor. E dentro um vento denso e quente de novembro. Queria uma chuva de sol. Seu bom dia deslocado era um canto vespertino. Chegara tarde na festa, mas cheia de vida e mornamente humana, aproveitou para dançar sozinha no salão. A casa era um grande salão de uma festa atrasada. E silenciosamente podia ouvir a chama do fogão que esquentava água para um café de uma só xícara. Uma só xícara, uma só asa de xícara, pensou. Uma só asa de xícara era pouco para voar, tal peso era. Então tomou café duas vezes. E cantou mais alto. Um vento vagabundo lambia sua cara feito um cachorro festivo. Por uma fração de instante lembrou-se dos banhos de barril e seu suor sujo de escola. Por aqueles dias rareavam os motivos para uma tenra felicidade. Tinha as costas de quem foi dinamitada por uma tragédia. E não tentava se consolar com promessas metafísicas. Soletrava  t-r-a-g-e-d-i-a  e não colocado-por-deus-só-pode-ser-para-o-bem. Uma coisa lhe pouparia os ouvidos da boba comiseração alheia: daquela vez, pensava chiaroscuro, alguém ousaria falar que “essas coisas acontecem”?  Não. Algumas coisas não acontecem. E quando acontecem só existiam antes nos jornais e nas novelas. “Não isso não acontece”, pensava escuro agora. E algo de muito pequeno, uma pedrinha brilhante, rolava da sua boca até o estômago, fazia um barulho molhado. Alguém jogara uma moeda na sua fonte de ácido clorídrico e o acaso atendeu seu desejo. “ Não isso não acontece”, pensava pisca-pisca. Com tímido orgulho, sentia-se perfurada de imperfeições, tragicamente singular. E dançava pelo salão vazio. A luz entrando pela janela, sem bater no seu corpo, sem ângulos, sem desvios, permitida, carne adentro,  de um poro até outro poro – como ela era - diametralmente oposta.  E iluminava assim o outro canto escuro da sala. Sua alma luminária. Tragicamente luminária. Talvez houvesse entre um ano de roubos e aquele de perdas um vão espaço para sorrir. Ainda havia um grande motivo para gostar dessas noites que catucam a gente vestidas de outras noites que já foram. Ela era o motivo e sabia que para um grande motivo nunca  havia culpado. E prometeu acordar amanhã num horário mais conciliável com o mundo dos outros. Mesmo com sono iria cumprir o cabo e o rabo. Mesmo com sono ia enfiar um rabo no dia e dá-lo aos gatos. Daquele lá onde todo leite do pires reflete os ponteiros pretos do relógio que nunca deixa a madrugada em paz. As noites fantasiadas de antes, o cheiro das coisas guardadas e nossos relógios afogados em pires rasos de um sedento ressentir. Prometeu baixo, mas prometeu: amanhã seria um ela irreconhecível. Mesmo com sono. E apagou sua alma-luminária, se espreguiçou lentamente e deitada. Já era hora de dormir. Já era hora de acordar bem longe dali.


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